sábado, 24 de dezembro de 2011

O bom ditador


Lúcio Flávio Pinto

Lula merece fazer Dilma Roussef sua sucessora. O brasileiro está satisfeito com o seu governo. Mas o resultado que se anunciará será bom para o país? É o Brasil verdadeiro que sairá ganhando desta eleição? Ou o futuro é ameaçador?


Da presunção à convicção do absoluto: é este o passo da democracia ao fascismo. É o passo em que o Brasil está. A direção foi dada por Luiz Inácio Lula da Silva. Como todos sabem, Lula pouco ou quase nada lê. Seu aprendizado sempre foi na prática, empírico e pragmático. Mas foi um aprendizado profundo. Sobreviveu à condição de imigrante nordestino em São Paulo, ao peleguismo sindical, à corrupção política, à tutela intelectual, aos adversários e aos inimigos.
Inteligente, perspicaz, audacioso e pertinaz, aprendeu o máximo que sua tão vasta experiência lhe possibilitou. É o mais preparado dos políticos brasileiros de todos os tempos, o único que fez a escola da vida para a carreira política. Durante duas décadas não teve mandato (renunciou ao que conquistou, de deputado federal; na sua versão, por não conseguir conviver com os 300 picaretas do parlamento; na verdade, por não conseguir dividir o poder), não precisou garantir a própria sobrevivência e da família, foi tendo cada vez mais tudo “do bom e do melhor”. Circulou pelo Brasil inteiro e pelo mundo.
Pôde se dedicar integralmente a cinco campanhas eleitorais para presidente da república. Perdeu três (sua sorte é tão imensa que perdeu as três primeiras: não saberia o que fazer então com os mandatos em disputa) e ganhou duas, ambas na hora certa. Nenhum político brasileiro tem cartel semelhante - nem provavelmente terá. A estrela de Lula é de primeira grandeza. Combinada com seus instintos, sua inteligência e sua identificação com o povo, resultou numa biografia realmente notável.
Contradição ambulante, conforme a auto-definição, é um ser que se modifica e se adapta ao ambiente quando o cenário ainda está em mutação, graças à sua incrível capacidade de antever o momento imediatamente seguinte ao vigente, Lula é aquilo que, abusando do jargão, se passou a chamar de “força da natureza”. É uma esplêndida culminação de instintos vitais. Mas sem a menor condição de autoconhecimento, de reflexão e de análise. Uma vocação inocente de ditador, com a melhor das aparências, sem consciência de culpa.
A expressão “nunca antes” é contumaz no seu discurso porque ele só consegue reconstituir os fatos dos quais participou, a história que vivenciou - e sempre através da sua ótica, impermeável à interferência externa, sobretudo à crítica. Tudo mais que exigir esforço cognitivo, pesquisa documental ou checagem factual escapa aos seus domínios. Ele se considera marco demarcatório da história do Brasil porque tem a si como eixo de tudo, o que não é de espantar nem pode legitimar críticas: é só isso o que Luiz Inácio Lula da Silva vê.
A dificuldade para criticá-lo com honestidade, sem preconceitos, está na circunstância de que nunca mesmo nenhum político foi tão popular quanto ele - nem tão poderoso. A oposição foi varrida do mundo real no Brasil. Não agora, de súbito, embora só agora tenha chegado ao fundo do poço, numa extinção melancólica e vil. Ela começou a desaparecer quando se deixou alcançar pela osmose. Todos viraram Lulas, imitações dele, suas sombras, suas marionetes.
O Brasil sofre os efeitos de um antiintelectualismo sem igual, sutil e corrosivo, imperceptível e devastador. Se o símbolo dos instintos vitais deu certo como nunca antes, por que pensar? Por que contestar? Por que contrapor? Por que, até mesmo, dialogar? É aderir e copiar.
Ali estava a fórmula do sucesso, simples e ao alcance de todos, já que permitiu ao apedeuta se tornar ídolo internacional, subir além do alcance de estadistas de várias partes do mundo, que lhe estenderam enormes tapetes vermelhos, fazer e acontecer - e, ao fim e ao cabo, como gostam de dizer os portugueses, símbolos do que é básico e elementar, tudo resultar em mais dividendos para o mago das circunstâncias.
O povo está feliz e votaria de novo em Lula se a constituição admitisse três eleições seguidas para presidente da república. Se Dilma passou dos 50%, tendo começado quase no nada (o “nonada” de Guimarães Rosa), Lula passaria dos 80%. Colocaria no chinelo o Jânio Quadros de exatamente meio século atrás, na eleição dos 5.6 milhões de votos de 1960 contra 3,8 milhões do marechal Lott.
O “poste eleitoral” de 2009 se tornou sucesso retumbante em 2010. Mas não só por causa do carisma e da popularidade de Lula. Também pelo uso mais abusivo da máquina pública de que se tem notícia em 80 anos de eleição no Brasil, a partir da revolução de 1930. Lula transformou as leis em potocas, ampliando para a cena nacional a chacota paroquial do caudilho paraense Magalhães Barata. Zombou das normas e dos seus aplicadores. Pisou sobre os papéis sagrados que rasgou. Fez de si um absoluto. O passado evaporou, como se fora antediluviano. Dele, todos perderam a memória, num Alzheimer coletivo, com dezenas de milhões de enfermos.
Não, Lula não é o pai da pátria (logo, Dilma não lhe pode ser a mãe putativa). Antes dele, centenas de cidadãos conceberam, colocaram em prática e administraram um plano de combate à inflação (e, a rigor, de criação da nova moeda brasileira, feita para durar) do qual só se tem algo comparável naquele que Hjalmar Schacht pôs em prática na Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial e faria o país renascer (infelizmente, para resultar em Adolf Hitler). Uma façanha que honra a cultura brasileira no mundo.
Ninguém que tenha nascido depois do Plano Real pode ter idéia do que era a deterioração dos valores econômicos no Brasil, a crueldade da anarquia inflacionária, sobretudo para os que vivem da renda (ou da venda da força) do seu trabalho. Acostumados a uma moeda forte (embora cambialmente enviesada), são levados a crer (ou mesmo partem da premissa) que sempre foi assim, que a estabilidade atual não deve ser creditada a ninguém nem é penhor de alguém. No entanto, ela tem uma origem datada e nomes que a personificam. Foi o grande legado de Fernando Henrique Cardoso.
Lula e o PT, que equiparavam o Plano Real ao Plano Collor e ao Cruzado de Sarney como manobras oportunistas e eleitoreiras, que não foram capazes de ver com isenção a criatura e segui-la com acuidade, hoje se beneficiam dessa grande aventura intelectual, que mobilizou talentos de várias pessoas excepcionais e o discernimento do seu comandante, quando ministro da fazenda de Itamar Franco e, depois, como presidente. Se tivesse chegado ao poder em 1989 ou em 1994, Lula e o PT não conseguiriam dar ao Brasil a moeda que hoje ele tem e a estabilidade de que usufrui.
É claro que os tucanos do príncipe dos sociólogos acumularam a partir daí desastres e vilanias, das privatizações (umas que não deviam ter sido feitas, outras que jamais podiam ser feitas pelos valores praticados) à imoralidade da reeleição, passando por uma visão elitista e predadora da administração pública, e uma incapacidade congênita de porosidade social. Os tucanos criaram as políticas compensatórias, mas não as abriram aos deserdados. Apenas as toleraram porque a primeira dama, a maior de todas, Ruth Cardoso, as patrocinou.
O grande lance de Lula foi exatamente dar densidade às criações sociais que os tucanos lançaram como decoração, como aplique nas suas fantasias empavonadas. Cinquenta milhões de brasileiros são clientes desse benefício, que, como o próprio nome diz, é compensatório, remediador, paliativo. Não projeta essas pessoas, não lhes dá condições para o futuro, não as tornam espinhas dorsais do progresso brasileiro. A lamentável situação da educação, da saúde e da segurança é uma advertência de que não se trata, ao contrário do que diz o catecismo, de desenvolvimento sustentável.
Os brasileiros estão felizes, compram como nunca, constroem como nunca, andam sobre quatro (ou duas) rodas como nunca, têm imóveis como nunca. Papai Lula abriu-lhes o cofre, mas abriu-lhes uma estreita passagem apenas de um lado do erário. Do outro lado, há larga avenida para banqueiros e empresários, para investidores da bolsa, para tomadores dos papéis oficiais, que lucram - como nunca, nem sob FHC, seu par - em bilhões e bilhões de reais, para companheiros e aderentes, para a “nova classe” trabalhadora, reprodução da “velha classe” elitista e não sua contrafação, como devia - e se dizia - ser.
Tudo isso não à base de poupança real, dinheiro ou ativos em geral acumulados para permitir investimentos, mas de crédito, de endividamento, como - de fato - nunca antes. Um terço do PIB é crédito, aos juros mais altos da face da terra, tão altos que podem ser reduzidos sem perder sua excepcionalidade. Há muito mais atividade econômica e enriquecimento, que permitem o reinvestimento. Mas em grande parte esse dinheiro consolida o modelo exportador de bens primários, dentre os quais recursos não renováveis, que se vão de vez, ao invés de servir ao enriquecimento interno, à consolidação da nação.
Sem o enorme incremento da exportação o Brasil não teria suportado tão bem a crise financeira internacional de 2008, condição que faltou durante as duas grandes crises externas ocorridas na gestão FHC. O problema (seriíssimo) é que dependemos de uns poucos produtos primários (minério de ferro, soja, carne) e de uma quantidade ainda menor de parceiros, com destaque inquietante para a China, da qual nos tornamos quase um apêndice.
O Brasil imediatista e superficial de hoje é o reflexo coerente do líder que o comanda e ao qual o país dá sua aprovação, nesse coro do consentimento incluídos os oportunistas da oposição. Eles traíram a função histórica que lhes cabe, de remar contra a corrente, de não se deixar seduzir pela aprovação fácil, pela fórmula do sucesso fornecida pelos marqueteiros, os bruxos da nossa época.
Em plena campanha eleitoral, vemos o Grande Irmão censurando os críticos, tirando a tomada dos insubmissos, armando golpes que, descobertos, se tornam infantilidades inimputáveis porque a oposição também perdeu a noção de tempo e espaço, o senso do distinto e do diverso, lançando-se desavergonhadamente para debaixo do guarda-chuva do Big Brother.
Pela primeira vez, não há contracanto eleitoral. Cresce de volume um uníssono que violenta a inteligência nacional, a capacidade que um país tem de reconhecer a si, de ver a realidade, ao invés de ser conduzido pela manipulação política e publicitária. Este Brasil unidimensional e unilinear é uma aberração, uma ficção, um factóide. Mas como as lideranças renunciaram ao seu papel profético ou se tornaram tão medíocres que perderam qualquer conteúdo, cristalizou-se o dominó de Fernando Pessoa: “quando quis tirar a máscara,/ estava pregada na cara”.
Homem de São Paulo (apesar das origens geográficas nordestinas), como FHC (só circunstancialmente carioca), Lula é o outro lado da mesma moeda. Não é igual, mas é o mesmo. Enquanto influencia e faz amigos, com sua verve e graça, os de sempre mandam na economia, seguindo esquema em vigor há duas décadas. Enquanto São Paulo é a cidade com mais helicópteros em trânsito por seu espaço aéreo, as favelas do Rio de Janeiro são teatro de operações bélicas da bandidagem, com e sem uniforme. O Brasil afluente convive com o Brasil doente.
Lula merece ganhar esta eleição. Mas não ganhar como parece que vai ganhar de fato, tornando secundário ou irrelevante quem ganhará de direito. Mesmo porque, no íntimo, só com seus botões, qualquer ser pensante hesitará ao tentar responder a um mistério criado e prolongado pelos marqueteiros e seus esteticistas, cirurgiões e feiticeiros outros: que Dilma é essa?
Num passado longínquo, um quadro da ditadura militar perguntou a nós todos: mas que país é este? Foi uma época de milagre, como agora, até maior (dois dígitos de crescimento anual do PIB), bem parecido com o de JK antes (portanto, o “nunca” não se aplica a esse passado). A pergunta tem que ser refeita, hoje. Mas talvez já não se consiga uma resposta. O absoluto é uma abstração, embora malsã. Sua maior malignidade está em se infiltrar sem ser percebido. E, mesmo sendo impossível, passar a ser aceito como normal. Como agora.
LFP @ agosto 15, 2010

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O fogo da vida

Em um ensaio chamado “Pragmatismo e romanticismo” tentei recolocar o argumento da “Defesa da poesia” de Shelley.  No coração do romanticismo, disse, estava a afirmação de que a razão só pode seguir os caminhos que a imaginação abriu primeiro. Sem palavras, não há raciocínio. Sem imaginação, não há palavras novas. Sem palavras novas, não há progresso moral ou intelectual.

Terminei este ensaio contrastando a habilidade do poeta de nos dar uma linguagem mais rica com a tentativa do filósofo de adquirir um acesso não-linguístico ao realmente real. O sonho de Platão por tal acesso foi ele mesmo uma grande descoberta poética. Mas no tempo de Shelley,  argumentei, este sonho já havia se esgotado. Nós somos hoje mais capazes de reconhecer nossa finitude — de admitir que jamais vamos entrar em contato com algo maior que nós mesmos. Esperamos, ao invés disso, que a vida humana aqui na terra se tornará mais rica do que nos séculos passados porque a linguagem usada por nossos remotos descendentes terá mais recursos do que a nossa tinha. Nosso vocabulário estará para os deles como os dos nossos ancestrais primitivos estavam para os nossos.

Neste ensaio, como em escritos anteriores, usei ‘poesia’ em sentido largo. Expandi o termo de Harold Bloom ‘poeta forte’ para cobrir escritores de prosa que inventaram novos jogos de linguagem para jogarmos – pessoas como Platão, Newton, Marx, Darwin e Freud tanto quanto os versistas como Milton e Blake. Esses jogos podem envolver equações matemáticas, ou argumentos indutivos, ou narrativas dramáticas, ou (no caso dos versistas) inovação da prosódica. Mas a distinção entre prosa e verso era irrelevante para meus propósitos filosóficos.

Pouco depois de ter terminado de escrever “Pragmatismo e romanticismo” fui diagnosticado com um câncer inoperável no pâncreas. Alguns meses depois de ter sido informado sobre as más notícias, estava sentado tomando café com meu filho mais velho e uma prima que estava me visitando. Minha prima (que é uma pastora da igreja batista) me perguntou se eu havia encontrado meus pensamentos se virando em direção a temas religiosos, e eu disse que não. “Bem, e quanto à filosofia?”, meu filho perguntou. “Não”, respondi, nem a filosofia que havia escrito nem a que havia lido parecia ter qualquer ligação com a minha situação. Não tinha nenhum problema com o argumento de Epicuro de que é irracional sentir medo da morte, nem com a sugestão de Heidegger de que a ontoteologia origina-se na tentativa de fugir da nossa mortalidade. Mas nem ataraxia (liberdade de perturbação) nem Sein zum Tode (ser em direção à morte) me pareciam ser o ponto principal.

“Nada do que tem lido tem sido de alguma utilidade?”, insistiu meu filho. “Sim”, falei sem pensar, “poesia”.  “Quais poemas?”, perguntou. Citei duas velhas castanhas que havia recentemente escavado da memória e que estranhamente estavam me encorajando, os versos mais citados do “Jardim de Proserpine” de Swinburn.

Agradecemos com breve agradecimento
Quaisquer deuses que possam existir
Pois ninguém dura para sempre;
Pois homem morto jamais se levanta;
Pois mesmo o rio mais cansado
Sopra para algum lugar seguro no mar.


e “Em seu aniversário de setenta e cinco anos” de Landor:

Natureza amei, e, próximo à natureza, arte;
Esquentei ambas as mãos diante do fogo da vida,
Ela afunda, e estou pronto para partir.


Encontrei conforto neste meandro lento e nestas brasas gaguejantes.  Suspeito que nenhum efeito comparável poderia ser provocado pela prosa. Não apenas imagens, mas também rima e ritmo foram necessários para fazer o trabalho. Em linhas como essas, todos os três conspiram para produzir um grau de compressão, e assim de impacto, que apenas o verso pode alcançar. Comparada com as emoções moldadas tramadas pelos versistas, mesmo a melhor prosa é dispersa.


Apesar de diversos pedaços de verso terem tido grande significados para mim em momentos particulares da minha vida, jamais fui capaz de escrever algo pessoal (a não ser rascunhar sonetos durante reuniões departamentais entendiantes – uma maneira de rabiscar). Nem estou em dia com o trabalho dos poetas contemporâneos. Quando leio versos, na maioria das vezes se trata dos meus favoritos da adolescência.

Suspeito que minha ambivalência com relação à poesia, neste sentido restrito, seja o resultado de complicações edipianas produzidas por ter tido um poeta como pai (ver James Rorty, Children of the Sun - Macmillan, 1926).

Como quer que tenha sido,  agora gostaria que tivesse passado mais tempo da minha vida com versos.

Isso não é porque tema ter perdido as verdades que são incapazes de serem afirmadas em prosa.

Não existem tais verdades; não existe nada sobre a morte que Swinburne e Landor soubessem, mas que Epicuro e Heidegger fracassaram em descobrir. Ao contrário, é porque teria vivido mais plenamente se tivesse sido capaz de recitar mais velhas castanhas – da mesma forma que também teria se tivesse tido mais amigos íntimos. Culturas com vocabulários mais ricos são mais plenamentes humanas – mais distantes das bestas – do que as mais pobres; homens e mulheres individuais são mais completamente humanos quando suas memórias estão amplamente estocadas com versos.
 
 Trad. Susana de Castro


Rorty lendo a Dialética do Esclarecimento: http://www.youtube.com/watch?v=svMs2ZcTU5c&feature=relmfu

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Prefácio de Aurora


Este prefácio chega tarde, mas não demasiado tarde; no fundo, que importam cinco ou seis anos? Um tal livro, um tal problema, não são apressados; e, além disso, somos amigos do lento, eu e o meu livro. Não fui filólogo em vão, sou-o talvez ainda, o que quer dizer um professor de leitura lenta: _ por fim, escrevo também lentamente. Agora isso não só faz parte dos meus hábitos, como de meu gosto _ um gosto malicioso talvez? _ Não escrever nada que não deixe desesperada todo tipo de pessoa que 'tem pressa'. A filologia é, efetivamente, essa arte venerável que exige do seu admirador, antes de tudo uma coisa: manter-se afastado, não se precipitar, tornar-se silencioso, lento, _ como uma arte, um conhecimento de ourives aplicado à palavra, uma arte que tem para executar apenas trabalho sutil e cauteloso e que não chega a lugar algum se não for lentamente. É por isso que ela é mais necessária do que nunca, é por isso que, numa era do “trabalho”, ela nos atrai e nos encanta muito mais, ou por outras palavras: num tempo de pressa, de indecente precipitação, de suor, que “quer acabar” tudo de repente, sem exceção de todos os livros, antigos e modernos: _ quanto a nossa arte, ela não pôs fim facilmente ao que quer que fosse, ela ensina a ler convenientemente; quer dizer, lentamente, profundamente, olhando com prudência para trás e para diante de si, com pensamentos ocultos, com as portas abertas, com os dedos e os olhos sutis... ó pacientes amigos, este livro deseja apenas leitores e filólogos perfeitos: aprendei a ler-me convenientemente!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Soneto de Mário Faustino










Necessito de um ser, um ser humano
Que me envolva de ser
Contra o não ser universal, arcano
Impossível de ler

À luz da lua que ressarce o dano
Cruel de adormecer
A sós, à noite, ao pé do desumano
Desejo de morrer.

Necessito de um ser, de seu abraço
Escuro e palpitante
Necessito de um ser dormente e lasso

Contra meu ser arfante:
Necessito de um ser sendo ao meu lado
Um ser profundo e aberto, um ser amado.

                                                 Mário Faustino






O homem e sua hora
               

Autor de uma das mais consistentes coletâneas de poesia da década de 1950, O Homem e sua hora (1955), Mário Faustino foi o primeiro a praticar, com exclusividade, a crítica de poesia, principalmente na página, de cunho didático, Poesia-Experiência, do Suplemento dominical do Jornal do Brasil, na mesma década, por ele organizada e publicada. A poesia de Mário é uma singular mistura de tradicionalismo e anti-tradicionalismo, em mútua intercorrência com a crítica. É a poesia de um poeta que também foi crítico e que foi crítico como poeta.

Mas venham de onde vierem, de seu único livro, O Homem e sua hora, dos poemas que avulsamente publicou na imprensa ou dos “fragmentos” póstumos, os versos de Mário Faustino revelam sempre, num jogo de contrários, além da mesma temática – o amor, o sexo, a morte, a busca da imortalidade, e o ambíguo poder da linguagem poética – a preponderância do verso realçando o substrato mágico e mítico da linguagem poética, como nos “Sete sonetos de Amor e Morte”, que seguem a sugestão da trágica fraternidade dos versos de Leopardi: “Como irmãos engendrou a sorte, ao mesmo tempo, Amor e Morte” (Fratelli a um tempo stesso amor e morte ingenerò la sorte). De encontro à projeção dramática da sujetividade tensa, universalizando o Eu como contedor do mundo, sob a carga mítica da cultura clássica e do cristianismo, são versos densamente metafóricos e alusivos, que abrangem diferentes tonalidades, como o canto, o louvor, o vaticínio ou a sagrada invocação como nesses versos do poema-título de O Homem e sua hora: “Aqui Sábia sombra de João, fumo sacro de Febo, / Venho a Delfos e Patmos consultar-vos, / Vós que sabeis que conjunções de agouros / E astros forma esta Hora, que soturnos / Vôos de asas pressagas este instante”.

Temos aí, com essa metamorfose lúdica do Ego, o embalo da grande lírica moderna do sobressalto metafísico, da revivescência órfica e da rememoração histórica: uma lírica politonal, combinando várias tonalidades a unidades de cunho narrativo, e também uma lírica reflexiva porque acolhe o pensamento, a inteligência abstrata ao lado da ressonância intuitiva e onírica da imagem, como no órfico soneto decassílabo Nam Sybillam” (“É certo, Sybila), escrito à maneira inglesa, com os dois versos finais em timbre de augúrio.

Nessas duas escalas do politonal e do reflexivo perfaz-se a fisionomia crítica da poesia de Mário Faustino. A crítica, que não lhe vem por acréscimo, decorre de seu movimento interno: a procura do novo sem perda da tradição, mediante três maneiras características que garantiram a união do poeta crítico ao crítico poeta.

Poeta-crítico. Como afirmava Novalis, só é crítico de poesia quem sabe fazê-la. A poesia só pode ser criticada pela poesia (Schlegel). Ainda Schlegel: verdadeiro crítico, autor elevado à segunda potência.

Mário percorreu três estilos de poesia crítica. Do poeta crítico ao crítico-poeta. Poesia realizada como arte: uma aprendizagem da vida e da poesia.

Intérprete de seu tempo, o poeta também serve a necessidades ancestrais. Mário: apologético da vida, ao mesmo tempo artesão competente da palavra e profissional do conhecimento.
         
        Belém, 2004

        

domingo, 4 de dezembro de 2011

ABRAÃO




Abraão é um desses nomes célebres na Ásia Menor e na Arábia, como Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia, Orfeu na Trácia, Odin nas nações setentrionais e tantos outros mais conhecidos por sua celebridade do que por uma história bem comprovada. Não falo aqui senão da história profana, pois quanto à dos judeus, nossos mestres e nossos inimigos, em quem cremos e que detestamos, tendo sido a história desse povo visivelmente escrita pelo próprio Espírito Santo, temos por ela os sentimentos que devemos ter. Dirijo-me apenas aos árabes; que se gabam de descender de Abraão por Ismael; que acreditam ter sido esse patriarca o fundador de Meca, onde teria morrido. O fato é que a raça de Ismael foi infinitamente mais favorecida por Deus do que a raça de Jacó. Uma e outra, é verdade, produziram ladrões. Mas os ladrões árabes foram incomparavelmente superiores aos ladrões judaicos. Os descendentes de Jacó não conquistaram mais que uma faixa de terra insignificante, que perderam. Os descendentes de Ismael avassalaram parte da Ásia, parte da África e parte da Europa, edificaram um império mais vasto que o império dos romanos e enxotaram os judeus de suas cavernas – que estes chamavam terra da promissão.

Bem difícil seria, à luz da história moderna, ter sido Abraão pai de duas nações tão diferentes. Dizem que nasceu na Caldéia, filho de pobre oleiro que ganhava a vida fazendo pequenos ídolos de barro. É pouco verossímil que esse filho de oleiro se haja abalançado a ir fundar Meca a trezentas léguas de distância, de baixo do trópico, tendo de vingar desertos intransitáveis. Se foi um conquistador, certamente ter-se-á dirigido ao belo pais da Assíria. Se, como o despintam, não passou de um pobre diabo, então não terá fundado reinos senão na própria terra.

Reza o Gênesis que tinha Abraão setenta e cinco anos ao emigrar do país de Harã, após a morte de seu pai Tareu o oleiro. O mesmo Gênesis, porém, diz que Tareu, tendo gerado Abraão aos setenta anos, viveu até a idade de duzentos e cinco anos, e que Abraão só saiu de Harã depois da morte do pai. Portanto é claro, segundo o próprio Gênesis, que Abraão contava cento e trinta e cinco anos quando deixou a Mesopotâmia. Saiu de um pais idólatra para outro país idólatra: Siquêm, na Palestina. Por que? Por que deixou as férteis margens do Eufrates por terras tão remotas, estéreis e pedregosas? A língua caldaica devia ser muito diferente da língua de Siquêm. Não se tratava de lugar de comércio. Siquêm dista da Caldéia mais de cem léguas. É preciso transpor desertos para lá chegar. Mas Deus queria que Abraão realizasse essa viagem. Queria mostrar-lhe a terra que séculos depois haviam de habitar seus pósteros. Custa ao espírito humano compreender os motivos de tal peregrinação.

Mal arriba ao montanhoso rincão de Siquêm, obriga-o a fome a abandoná-lo. Vai para o Egito em companhia de sua mulher, à procura de com que viver. Duzentas léguas medeiam de Siquêm e Menfis. Será natural ir buscar trigo tão longe? Num país de que nem se sabe a língua? Estranhas viagens empreendidas à idade de quase cento e quarenta anos. Traz a Menfis sua mulher Sara. Sara era extremamente jovem em comparação com ele, pois não contava mais que sessenta e cinco anos. Como fosse muito bonita, Abraão resolveu tirar proveito de sua beleza. “Façamos de conta que você é minha irmã,” – disse-lhe – “a fim de que me acolham com benevolência”. “Façamos de conta que é minha filha” – devia dizer. O rei enamora-se da jovem Sara e presenteia o pretenso irmão com muitas ovelhas, bois, burros, mulas, camelos e servos. O que prova – que já então era o Egito um reino poderoso e civilizado – por conseguinte antigo – e que se recompensavam magnificamente os irmãos que vinham oferecer as irmãs aos reis de Menfis.

Tinha a jovem Sara noventa anos, segundo a Escritura, quando Deus lhe prometeu que Abraão, que então tinha cento e sessenta, lhe daria um filho.

Abraão, que gostava de vigiar, tomou o caminho do hórrido deserto de Cades, acompanhado da mulher grávida, sempre jovem e bonita. Como acontecera com o rei egípcio, enamorou-se também de Sara um rei do deserto – O pai dos crentes pregou a mesma mentira que no Egito: fez passar a esposa por irmã. O que mais uma vez lhe valeu ovelhas, bois e servos. Pode-se dizer que, graças a sua mulher, Abraão se tornou riquíssimo.

Os comentaristas escreveram um número prodigioso de volumes para justificar o procedimento de Abraão e conciliar a cronologia. Cumpre-me, pois, a eles remeter o leitor. São todos espíritos finos e sutis, excelentes metafísicos, senhores sem preconceito e profundamente avessos à pedanteria.