Lúcio Flávio Pinto
Lula merece fazer Dilma Roussef sua sucessora. O brasileiro está satisfeito com o seu governo. Mas o resultado que se anunciará será bom para o país? É o Brasil verdadeiro que sairá ganhando desta eleição? Ou o futuro é ameaçador?
Da
presunção à convicção do absoluto: é este o passo da democracia
ao fascismo. É o passo em que o Brasil está. A direção foi dada
por Luiz Inácio Lula da Silva. Como todos sabem, Lula pouco ou quase
nada lê. Seu aprendizado sempre foi na prática, empírico e
pragmático. Mas foi um aprendizado profundo. Sobreviveu à condição
de imigrante nordestino em São Paulo, ao peleguismo sindical, à
corrupção política, à tutela intelectual, aos adversários e aos
inimigos.
Inteligente,
perspicaz, audacioso e pertinaz, aprendeu o máximo que sua tão
vasta experiência lhe possibilitou. É o mais preparado dos
políticos brasileiros de todos os tempos, o único que fez a escola
da vida para a carreira política. Durante duas décadas não teve
mandato (renunciou ao que conquistou, de deputado federal; na sua
versão, por não conseguir conviver com os 300 picaretas do
parlamento; na verdade, por não conseguir dividir o poder), não
precisou garantir a própria sobrevivência e da família, foi tendo
cada vez mais tudo “do bom e do melhor”. Circulou pelo Brasil
inteiro e pelo mundo.
Pôde
se dedicar integralmente a cinco campanhas eleitorais para presidente
da república. Perdeu três (sua sorte é tão imensa que perdeu as
três primeiras: não saberia o que fazer então com os mandatos em
disputa) e ganhou duas, ambas na hora certa. Nenhum político
brasileiro tem cartel semelhante - nem provavelmente terá. A estrela
de Lula é de primeira grandeza. Combinada com seus instintos, sua
inteligência e sua identificação com o povo, resultou numa
biografia realmente notável.
Contradição
ambulante, conforme a auto-definição, é um ser que se modifica e
se adapta ao ambiente quando o cenário ainda está em mutação,
graças à sua incrível capacidade de antever o momento
imediatamente seguinte ao vigente, Lula é aquilo que, abusando do
jargão, se passou a chamar de “força da natureza”. É uma
esplêndida culminação de instintos vitais. Mas sem a menor
condição de autoconhecimento, de reflexão e de análise. Uma
vocação inocente de ditador, com a melhor das aparências, sem
consciência de culpa.
A
expressão “nunca antes” é contumaz no seu discurso porque ele
só consegue reconstituir os fatos dos quais participou, a história
que vivenciou - e sempre através da sua ótica, impermeável à
interferência externa, sobretudo à crítica. Tudo mais que exigir
esforço cognitivo, pesquisa documental ou checagem factual escapa
aos seus domínios. Ele se considera marco demarcatório da história
do Brasil porque tem a si como eixo de tudo, o que não é de
espantar nem pode legitimar críticas: é só isso o que Luiz Inácio
Lula da Silva vê.
A
dificuldade para criticá-lo com honestidade, sem preconceitos, está
na circunstância de que nunca mesmo nenhum político foi tão
popular quanto ele - nem tão poderoso. A oposição foi varrida do
mundo real no Brasil. Não agora, de súbito, embora só agora tenha
chegado ao fundo do poço, numa extinção melancólica e vil. Ela
começou a desaparecer quando se deixou alcançar pela osmose. Todos
viraram Lulas, imitações dele, suas sombras, suas marionetes.
O
Brasil sofre os efeitos de um antiintelectualismo sem igual, sutil e
corrosivo, imperceptível e devastador. Se o símbolo dos instintos
vitais deu certo como nunca antes, por que pensar? Por que contestar?
Por que contrapor? Por que, até mesmo, dialogar? É aderir e copiar.
Ali
estava a fórmula do sucesso, simples e ao alcance de todos, já que
permitiu ao apedeuta se tornar ídolo internacional, subir além do
alcance de estadistas de várias partes do mundo, que lhe estenderam
enormes tapetes vermelhos, fazer e acontecer - e, ao fim e ao cabo,
como gostam de dizer os portugueses, símbolos do que é básico e
elementar, tudo resultar em mais dividendos para o mago das
circunstâncias.
O
povo está feliz e votaria de novo em Lula se a constituição
admitisse três eleições seguidas para presidente da república. Se
Dilma passou dos 50%, tendo começado quase no nada (o “nonada”
de Guimarães Rosa), Lula passaria dos 80%. Colocaria no chinelo o
Jânio Quadros de exatamente meio século atrás, na eleição dos
5.6 milhões de votos de 1960 contra 3,8 milhões do marechal Lott.
O
“poste eleitoral” de 2009 se tornou sucesso retumbante em 2010.
Mas não só por causa do carisma e da popularidade de Lula. Também
pelo uso mais abusivo da máquina pública de que se tem notícia em
80 anos de eleição no Brasil, a partir da revolução de 1930. Lula
transformou as leis em potocas, ampliando para a cena nacional a
chacota paroquial do caudilho paraense Magalhães Barata. Zombou das
normas e dos seus aplicadores. Pisou sobre os papéis sagrados que
rasgou. Fez de si um absoluto. O passado evaporou, como se fora
antediluviano. Dele, todos perderam a memória, num Alzheimer
coletivo, com dezenas de milhões de enfermos.
Não,
Lula não é o pai da pátria (logo, Dilma não lhe pode ser a mãe
putativa). Antes dele, centenas de cidadãos conceberam, colocaram em
prática e administraram um plano de combate à inflação (e, a
rigor, de criação da nova moeda brasileira, feita para durar) do
qual só se tem algo comparável naquele que Hjalmar Schacht pôs em
prática na Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial e faria o país
renascer (infelizmente, para resultar em Adolf Hitler). Uma façanha
que honra a cultura brasileira no mundo.
Ninguém
que tenha nascido depois do Plano Real pode ter idéia do que era a
deterioração dos valores econômicos no Brasil, a crueldade da
anarquia inflacionária, sobretudo para os que vivem da renda (ou da
venda da força) do seu trabalho. Acostumados a uma moeda forte
(embora cambialmente enviesada), são levados a crer (ou mesmo partem
da premissa) que sempre foi assim, que a estabilidade atual não deve
ser creditada a ninguém nem é penhor de alguém. No entanto, ela
tem uma origem datada e nomes que a personificam. Foi o grande legado
de Fernando Henrique Cardoso.
Lula
e o PT, que equiparavam o Plano Real ao Plano Collor e ao Cruzado de
Sarney como manobras oportunistas e eleitoreiras, que não foram
capazes de ver com isenção a criatura e segui-la com acuidade, hoje
se beneficiam dessa grande aventura intelectual, que mobilizou
talentos de várias pessoas excepcionais e o discernimento do seu
comandante, quando ministro da fazenda de Itamar Franco e, depois,
como presidente. Se tivesse chegado ao poder em 1989 ou em 1994, Lula
e o PT não conseguiriam dar ao Brasil a moeda que hoje ele tem e a
estabilidade de que usufrui.
É
claro que os tucanos do príncipe dos sociólogos acumularam a partir
daí desastres e vilanias, das privatizações (umas que não deviam
ter sido feitas, outras que jamais podiam ser feitas pelos valores
praticados) à imoralidade da reeleição, passando por uma visão
elitista e predadora da administração pública, e uma incapacidade
congênita de porosidade social. Os tucanos criaram as políticas
compensatórias, mas não as abriram aos deserdados. Apenas as
toleraram porque a primeira dama, a maior de todas, Ruth Cardoso, as
patrocinou.
O
grande lance de Lula foi exatamente dar densidade às criações
sociais que os tucanos lançaram como decoração, como aplique nas
suas fantasias empavonadas. Cinquenta milhões de brasileiros são
clientes desse benefício, que, como o próprio nome diz, é
compensatório, remediador, paliativo. Não projeta essas pessoas,
não lhes dá condições para o futuro, não as tornam espinhas
dorsais do progresso brasileiro. A lamentável situação da
educação, da saúde e da segurança é uma advertência de que não
se trata, ao contrário do que diz o catecismo, de desenvolvimento
sustentável.
Os
brasileiros estão felizes, compram como nunca, constroem como nunca,
andam sobre quatro (ou duas) rodas como nunca, têm imóveis como
nunca. Papai Lula abriu-lhes o cofre, mas abriu-lhes uma estreita
passagem apenas de um lado do erário. Do outro lado, há larga
avenida para banqueiros e empresários, para investidores da bolsa,
para tomadores dos papéis oficiais, que lucram - como nunca, nem sob
FHC, seu par - em bilhões e bilhões de reais, para companheiros e
aderentes, para a “nova classe” trabalhadora, reprodução da
“velha classe” elitista e não sua contrafação, como devia - e
se dizia - ser.
Tudo
isso não à base de poupança real, dinheiro ou ativos em geral
acumulados para permitir investimentos, mas de crédito, de
endividamento, como - de fato - nunca antes. Um terço do PIB é
crédito, aos juros mais altos da face da terra, tão altos que podem
ser reduzidos sem perder sua excepcionalidade. Há muito mais
atividade econômica e enriquecimento, que permitem o reinvestimento.
Mas em grande parte esse dinheiro consolida o modelo exportador de
bens primários, dentre os quais recursos não renováveis, que se
vão de vez, ao invés de servir ao enriquecimento interno, à
consolidação da nação.
Sem
o enorme incremento da exportação o Brasil não teria suportado tão
bem a crise financeira internacional de 2008, condição que faltou
durante as duas grandes crises externas ocorridas na gestão FHC. O
problema (seriíssimo) é que dependemos de uns poucos produtos
primários (minério de ferro, soja, carne) e de uma quantidade ainda
menor de parceiros, com destaque inquietante para a China, da qual
nos tornamos quase um apêndice.
O
Brasil imediatista e superficial de hoje é o reflexo coerente do
líder que o comanda e ao qual o país dá sua aprovação, nesse
coro do consentimento incluídos os oportunistas da oposição. Eles
traíram a função histórica que lhes cabe, de remar contra a
corrente, de não se deixar seduzir pela aprovação fácil, pela
fórmula do sucesso fornecida pelos marqueteiros, os bruxos da nossa
época.
Em
plena campanha eleitoral, vemos o Grande Irmão censurando os
críticos, tirando a tomada dos insubmissos, armando golpes que,
descobertos, se tornam infantilidades inimputáveis porque a oposição
também perdeu a noção de tempo e espaço, o senso do distinto e do
diverso, lançando-se desavergonhadamente para debaixo do
guarda-chuva do Big Brother.
Pela
primeira vez, não há contracanto eleitoral. Cresce de volume um
uníssono que violenta a inteligência nacional, a capacidade que um
país tem de reconhecer a si, de ver a realidade, ao invés de ser
conduzido pela manipulação política e publicitária. Este Brasil
unidimensional e unilinear é uma aberração, uma ficção, um
factóide. Mas como as lideranças renunciaram ao seu papel profético
ou se tornaram tão medíocres que perderam qualquer conteúdo,
cristalizou-se o dominó de Fernando Pessoa: “quando quis tirar a
máscara,/ estava pregada na cara”.
Homem
de São Paulo (apesar das origens geográficas nordestinas), como FHC
(só circunstancialmente carioca), Lula é o outro lado da mesma
moeda. Não é igual, mas é o mesmo. Enquanto influencia e faz
amigos, com sua verve e graça, os de sempre mandam na economia,
seguindo esquema em vigor há duas décadas. Enquanto São Paulo é a
cidade com mais helicópteros em trânsito por seu espaço aéreo, as
favelas do Rio de Janeiro são teatro de operações bélicas da
bandidagem, com e sem uniforme. O Brasil afluente convive com o
Brasil doente.
Lula
merece ganhar esta eleição. Mas não ganhar como parece que vai
ganhar de fato, tornando secundário ou irrelevante quem ganhará de
direito. Mesmo porque, no íntimo, só com seus botões, qualquer ser
pensante hesitará ao tentar responder a um mistério criado e
prolongado pelos marqueteiros e seus esteticistas, cirurgiões e
feiticeiros outros: que Dilma é essa?
Num
passado longínquo, um quadro da ditadura militar perguntou a nós
todos: mas que país é este? Foi uma época de milagre, como agora,
até maior (dois dígitos de crescimento anual do PIB), bem parecido
com o de JK antes (portanto, o “nunca” não se aplica a esse
passado). A pergunta tem que ser refeita, hoje. Mas talvez já não
se consiga uma resposta. O absoluto é uma abstração, embora malsã.
Sua maior malignidade está em se infiltrar sem ser percebido. E,
mesmo sendo impossível, passar a ser aceito como normal. Como agora.
LFP
@ agosto 15, 2010